sábado, 20 de fevereiro de 2010

Quem estuda o quê

por Martim Avillez Figueiredo, Publicado em 20 de Fevereiro de 2010 


Ensino profissional? Uma discussão como esta não se começa pelo fim. Paulo Rangel devia sabê-lo


Não há nada de verdadeiramente errado em defender o ensino profissional, a não ser talvez a idade com que essa possibilidade é aceite por uma sociedade: não é igual uma criança de 12 anos aprender a pensar ou aprender a fazer. Não vale a pena radicalizar o discurso - vale a pena insistir na discussão: este é um tema-chave de uma sociedade desenvolvida. Um: A educação é a ferramenta de política social mais usada na busca da célebre igualdade de oportunidades. Considera-se que se todos tiverem igual acesso a boa educação, e semelhantes condições na capacidade de se concentrarem nela, todos ganham o poder de alterar o seu destino. É por isso que os países gastam tanto dinheiro em educação. Dois: Sucede que a simples existência destas políticas sociais não resolve o problema essencial - como tornar de facto mais socialmente justo o destino de vida de tantas pessoas. Já se sabe: a escola não chega e uma forte razão de insucesso escolar está no enquadramento familiar, social, económico. A motivação das crianças para estudar não é toda igual. E sobra ainda a implacável lotaria genética - nem todos revelam iguais capacidades cognitivas, de inteligência, de aprendizagem. Aqui ganha lastro o debate do ensino profissional - perdem-se muitas vocações por esta bizarra mania de que a escola é apenas para estudar, não para fazer. O argumento é tentador. Três: A OCDE, já desde os anos 80, defende esta alternativa com intensidade crescente - a escola precisa de pôr lado a lado a importância das grandes ideias e de comportamentos sociais tão simples como dizer bom dia. Parece disparate, mas a ideia fica clara olhando o debate sobre os McJobs - mal pagos, esses empregos a virar hambúrgueres deram a adolescentes desfavorecidos aptidões para eles completamente desconhecidas: dizer bom dia, lavar as mãos ou respeitar uma qualquer hierarquia. Quatro: Sucede que, como os McJobs revelam, estas aptidões sociais e profissionais têm tanto mais peso quanto mais desfavorecida é a criança. O que devolve tudo ao início - o ensino profissional é uma saída usada pelos mais pobres e socialmente menos aptos. É uma segunda oportunidade. Rangel diz: É preferível do que vê-los abandonar a escola. É. Mas não é preferível que uma sociedade desista de procurar caminhos para concretizar a igualdade de oportunidades. Rangel defende-se: por isso fala em escola mista, uma escola que cruze todas essas aptidões e se ajuste à criança - não a criança aos currículos. Pode até ser - de resto, ensino profissional e com equivalências existe hoje. O que não é agradável é ver todos estes debates em Portugal começar sempre da pior maneira - com políticos a simplificar. Quinto: A educação não é uma brincadeira ideológica - é uma ferramenta social. Um político tem de a saber manejar também politicamente. Rangel falou de um ensino que prepare as crianças para o trabalho - esqueceu de falar de um ensino que resgate as crianças à exclusão social, que as motive, que as prepare para pensar. Quem pensa escolhe - e isso é que assusta normalmente os governos.
Fonte: i

O Martim Avillez Figueiredo tocou num ponto essencial neste excelente editorial do i: a escola e o ensino não devem ser uma brincadeira ideológica e a escola deve preparar as crianças para pensar. Quem pensa escolhe  é a frase chave, e tal como Martim Avillez Figueiredo de modo muito acutilante sugere, acho que é isso que assusta os nossos políticos. O ensino português sofreu muitas transformações (boas e más) desde o 25 de Abril, mas se há coisa que não mudou foi o facto de continuar a não preparar e a estimular as crianças a pensar pela sua própria cabeça. O ensino em Portugal infelizmente parece resumir-se a preparar as crianças  a decorar matérias e a decorar "fórmulas" seja para o que for. Outro dos grandes problemas do ensino em Portugal, e isto foi um erro histório do pós-25 de Abril e que ainda não foi corrigido, foi terem destruído um sistema de ensino profissional que funcionava bem e era uma boa alternativa e boa ferramenta de resgate das crianças à exclusão social caso não quisessem ser "doutores".  No pós-25 de Abril os nossos governos acharam que toda a gente em Portugal devia ser "doutores". Esqueceram-se foi que não pode haver quem não queira ser doutor, e esses desde então deixaram de ter um sistema de ensino profissional que até então lhes dava ferramentas bastante boas para terem oportunidades decentes no mundo do trabalho. O ensino profissional que existe hoje não oferece uma alternativa credível para quem não queira ser doutor, e isso Rangel parece também não perceber,tal como não percebe este PS de Sócrates que transformou o sistema de ensino profissional numa espécie de via mais fácil de se ter um canudo académico.

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